Anjo quebrado

março 19, 2017
A linha do maxilar se contrai suavemente e há nos seus olhos certa angústia. Essa angústia de abandono que tanto odeia e esconde, mas que eu posso ver. Odeia ficar sozinho, odeia ficar sozinho. E eu, apesar de amordaçar esse cuidado que ele ainda me inspira, deixo escapar alguma coisa de sentimento forasteiro. Assim, meus olhos o seguem. Procuro um vestígio de resposta, qualquer coisa de definitivo. Um ponto final.

Mas nossa amizade se foi como um gotejamento, como vírgulas. Um dia ele me veio com um afeto estranho, meio vacilante, abrindo algumas portas que eu sequer sabia que havia trancado, até torceu desse trapo velho e sanguinolento, a última confiança que eu podia dar. Deixei-me ouvir e consolar, deixei e deixei. Em um silêncio cumplice compartilhamos a intimidade dos olhos vermelhos. Poucas coisas me causaram tanta inquietude quanto  seus olhos vermelhos, vermelhos de que meu deus? O que ele não tinha?

Mas meus olhos vermelhos eram pálidos, e ele nunca os viu. Pois há coisas mais vermelhas e mais pálidas para se olhar. Há batons, unhas, tênues veias serpenteando pela pele cálida. Há admiração cega, elogios vazios, há pedestais e todo o resto...

Observo, ele não olha pra ninguém . O ego em seu peito, precipitando em sua boca, é suficiente para si. Talvez abaixo dele, da amargura e acidez que me queimara, exista alguém de jeitos mais macios, irreconhecível sombra de beleza, não manchada de indiferença, de mágoa afiada e traição.
Sinto-me febril e deixo-o, dessa vez, ir.

Era desconhecido á mim, o peso com que o rancor afunda. Credito então à ele, a primeira centelha de ódio persistente à macular minha memória. Essa honra é sua, anjo quebrado

6 comentários:

  1. Só tive duas amizades que foram embora dessa maneira, e nada pude fazer. A primeira me dói até hoje.
    Se o seu texto é fruto de um acontecimento verdadeiro, você o colocou no papel de uma maneira muito bonita mesmo.

    Com amor,
    Bruna Morgan

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    1. Esta já não me dói mais, esse texto funcionou como uma cura para mim. Obrigada. Um dia a dor se vai se você a transformar em outra coisa...

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  2. Esqueci de colocar no comentário anterior: "Escrever é esquecer", Fernando Pessoa.
    É muito bom colocar sentimentos em textos, e sentir que estão saindo de nós.

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    1. Sim, adorei a citação! As vezes me pego lendo coisas que escrevi a muito tempo e percebo que os acontecimentos de então, que pareciam ser o fim do mundo, hoje não tem tanta relevância para mim.
      Obrigada pela visita e pelos comentários!

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  3. "Um dia ele me veio com um afeto estranho, meio vacilante, abrindo algumas portas que eu sequer sabia que havia trancado, até torceu desse trapo velho e sanguinolento, a última confiança que eu podia dar. Deixei-me ouvir e consolar, deixei e deixei. Em um silêncio cumplice compartilhamos a intimidade dos olhos vermelhos. Poucas coisas me causaram tanta inquietude quanto seus olhos vermelhos, vermelhos de que meu deus? O que ele não tinha? [...]

    Sinto-me febril e deixo-o, dessa vez, ir. [...]

    Credito então à ele, a primeira centelha de ódio persistente à macular minha memória. Essa honra é sua."

    meu deus, garota, eu não aguento com suas palavras <3

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    1. Own fico muito feliz que você goste. Volte sempre lari. Suas visitas fieis são muito importantes.

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