Retorno

Fantástica. Forte. Talentosa. As palavras foram gravadas em mim tal qual rótulos em um produto. Sou quase uma frigideira antiaderente. Olho-me no espelho. Os olhos fundos e perpétuos me acusam de mentirosa, fingidora, atriz de uma tragédia inventada. Não me sinto parte desta pintura surrealista que criei sobre mim mesma. Meus saltos e batom fedendo a sangue denunciam uma carnificina kafkiana. Eu cheiro a vinho barato. Porém jamais beberiquei um e de fato abomino as loucuras alcoólicas. Em meus versos disserto sobre corpos, beijos, marcas, mulheres. Sinto me virgem feito uma adolescente tola. Lendo romances comerciais enquanto folheio revistas femininas. Ainda assim. Algo em mim é intoxicante. Feito um pote de veneno prestes a ser aberto, uma bomba em ponto de ignição, um carro em alta velocidade. Algo em mim grita em horror. Ao fundo toca Mozart. Enfim o prontuário se confirma. Sou uma bifurcação, uma lâmina de dois gumes, uma moeda. Uma personalidade. Depois de anos de inconsistência e inabitável solidão interior. Ser alguém é sufocante, perturbador, estranho. É como conhecer uma pessoa nova. É sentir se desconfiado. Calcular os passos. Estar encantado. Enquanto a água escorre por meu corpo nu e eu berro ensandecida a letra da minha música favorita ( sim, eu tenho uma música favorita) feito uma louca em surto, sensual, incrível, absurda. Sinto o prazer inominável do reconhecimento. Do agarrar a própria carne, sentir a própria pele, escutar a própria voz, ser a si mesmo sem pudores, rasgando a existência como que em um parto. Eu choro. Estou viva, finalmente, estou viva. Pela primeira vez, sinto me viva.