Caleidoscópio

junho 06, 2017
A luz da televisão era um caleidoscópio frenético, vibrando luzes sobre a pele oliva. Fazia-a parecer uma joia: De uma beleza pétrea e inalcançável. Ela estava bem ali, a meros trinta centímetros de mim, e minhas mãos eram proibidas de toca-la.Não há nada mais frustrante, sinceramente.
Virei o rosto e fechei os olhos. Conseguia reproduzir sua expressão intrigada em minhas retinas, nublada pela irritante névoa da memória. Ainda assim, eu seria capaz de desenha-la sempre que quisesse, a linha reta do nariz, a curva dramática dos cílios e o leve maxilar que guiava até os densos cabelos. Até o cheiro pálido de um perfume me parecia palpável aquela altura; vinha tão fácil quanto o cheiro da minha própria cama, quanto os traços do meu próprio rosto.
A constatação foi demais. O caleidoscópio me deixava tonta e o álcool parecia ter derretido meu cérebro, o suficiente para capitalizar a estupidez mantida adormecida numa das gavetas de pensamentos perigosos. As trancas estavam oleosas e a chave deslizou fácil, deixando escapar um enxame de borboletas, nós na garganta e pupilas dilatadas. Puro veneno.
Fitei-a de novo e não mais tinha ares de joia. Irene era fumaça, esvaindo-se entre segundos, gestos ambíguos, mãos mornas e palavras de tom duvidoso. Intoxicante a longo prazo e exigindo doses pequenas. Os efeitos eram esperanças penosas e textos mais penosos ainda, além da interminável negociação da verdade que tentava fazer tudo menos penoso apenas para amaciar o que restava do meu ego.
E se nós fôssemos as últimas pessoas do mundo, ainda assim ela não me amaria do mesmo jeito?
Não? Sim? Eu digo negociável.
Reprimi a ânsia de abraça-la e voltei-me para a tv novamente. Irene não tinha movido sequer um dedo, nem parecia ter respirado, quando a mim...
Consciente da minha pequena parada no tempo e das gavetas abertas, sorri.
Um dia, Irene, um dia, quando você tiver esgotado todos os amores infalíveis, os beijos intensos, as promessas vazias e estivermos sentadas mais uma vez nesse sofá, você vai finalmente olhar para mim e ai sim.
Vou poder te tocar.

8 comentários:

  1. Que texto intenso e tão bem construído...! As imagens vieram fácil à minha cabeça, e sem a névoa da memória, posto que esta não era minha.

    Adorei, apenas.

    Abraços! Boa terça-feira para você.
    As moscas na janela

    ResponderExcluir
  2. eu adoro o jeito que tu escreve...

    ResponderExcluir
  3. ai, uma das piores coisas é querer alguém e não ser recíproco.
    Aliás, você descreveu muito bem uma das vezes em que eu estive chapada huahua

    Com amor,
    Bruna Morgan

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Olá Bruna! Nunca tive essa experiência, mas já fiquei chapada de amor platônico.
      Obrigada pela visita, volte sempre <3

      Excluir
  4. Muitas vezes, conservamos a esperança na reciprocidade. É o amor...

    Beijão!
    Blog: *** Caos ***

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Sim, o amor é uma briga contínua entre o finalmente ser e o ser nunca mais. Todos nós estamos sujeitos a isso.
      Beijão!

      Excluir

Deixe seu comentário para incentivar a autora a continuar escrevendo, sua opinião é sempre bem vinda!

Tecnologia do Blogger.